Neste Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer, quarto aniversário da SOSDEMÊNCIAS, escrevo-vos num registo diferente.
Quero falar-vos de um livro, de ficção, com tudo o que a ficção tem de realidade. Quero falar-vos do livro “Para aquela que está sentada no escuro à minha espera”.
Como o Lobo Antunes tão bem sabe fazer, conseguimos ao longo do livro ficar imersos na personagem, conseguimos vivenciar a sua angústia, o seu desespero e rir com o humor satírico que caracteriza o autor.
Falo-vos de um livro cuja narradora/personagem principal, atriz, 70 e poucos anos tem, também, demência.
Escolho este livro de ficção por tão bem retratar a realidade que acredito aconteça com as pessoas com demência. Em que prevalece o estigma e a ideia de que a partir do momento em que este rótulo é atribuído, a pessoa fica diminuída, incapaz de expressar o que sente, quer e/ou precisa. A verdade é que a pessoa continua a ser a mesma.
O que acontece com a personagem várias vezes ao longo da narração é que se vê envolta em momentos em que a cabeça “fala” mas a linguagem não a consegue acompanhar. Em que ouve falar de si (seja por familiares, cuidadores, clínicos), na terceira pessoa, como se não estivesse presente. E, sentindo isso, não consegue perceber porque a tratam desta forma. E grita, para dentro, porque almeja ser ouvida.
Escolho este livro de ficção como mote porque não raras vezes vejo estes episódios acontecerem e não é ficção! Porque a sociedade, de forma geral, olha para as pessoas com Doença de Alzheimer ou outras Demências como incapazes, como não produtivos e, por isso, menos importantes. O que parece que por vezes cai no esquecimento, qual ironia do destino, é que independentemente do estadio da doença, é uma pessoa que está ali à nossa frente/ao nosso lado e por isso merece o nosso respeito e a nossa consideração. Merece ser ouvida, ainda que não o seja através das palavras.
É verdade que, muitas vezes, temos que usar a imaginação e a empatia para conseguirmos entender o que as pessoas com demência nos comunicam, já que a linguagem nem sempre consegue acompanhar a pensamento. O que não podemos assumir é que a pessoa já não tem vontade própria, já não consegue expressar o seu agrado/desagrado, o que quer e o que não quer. Pode ser útil voltarmos a “olhar” para a história da pessoa, relembrar as suas preferências, as suas expressões, os seus desejos. Podem não existir palavras, mas existem gestos, olhares, outras expressões faciais, inquietude… há tantas formas de comunicação! Só temos que estar atentos.
Neste Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer e nesta época sui generis em que vivemos, afastemo-nos um pouco (o tal do distanciamento, físico e não social) para que consigamos ver com outros olhos esta realidade. De seguida, baixemos a máscara… o veículo mais poderoso da comunicação vai ficar visível. É o sorriso! Não é diferente para alguém que também tem um diagnóstico de doença de Alzheimer.
Setenta e muitos no mínimo
mais velha que eles e portanto se me mandarem para a cama não obedeço, acabaram-se as ordens, o sobrinho do meu marido
– Está cada vez mais confusa
o senhor Barata para eles
– Já no tempo do teatro tinha alturas assim
o médico para ninguém
– O seu se passa com ela?