
Hoje, 21 de Setembro de 2019, dia Mundial da Doença de Alzheimer, terceiro aniversário da Plataforma SOSDEMÊNCIAS, escrevo-vos num “tom” diferente, mais pessoal.
A minha caminhada pela demência começou há mais de 10 anos, numa consulta de neurologia em que acompanhei a minha mãe e ouvi, pela primeira vez, “muito provavelmente Alzheimer”. Quem faz/fez esta caminhada sabe que quando chega a esta fase, de ouvir em voz alta, o que é dito não é novidade e não é nada que não se tenha repetido interiormente vezes sem conta. Mas, ouvir em modo alta voz torna as coisas mais reais, mais imprevisíveis, mais fora de controlo. Não pretendo fazer da minha experiência a experiência de todos, nem tão pouco tenho a pretensão de fazer desta experiência uma verdade absoluta é, só e apenas, a minha experiência.
Naquela tarde, começou oficialmente esta caminhada. E que caminhada… Qual subida aos picos da Europa, qual escalada aos Himalaias, qual travessia do deserto. Esta é e será seguramente uma das caminhadas da/s minha/nossas vida/s tal a intensidade das emoções a que a ela está associada. Evidentemente que atravessámos fases menos boas, de revolta, raiva, negação e outras tantas outras coisas que não vale a pena explanar MAS, e é a este mas que quero chegar, também recolhemos experiências muito positivas e gratificantes deste percurso, por vezes, sinuoso.
Quem nos conhece/conhecia sabe que sempre tive uma relação de muita proximidade com a minha mãe (não de melhores amigas mas de mãe e filha) de respeito, de compreensão de apoio mútuo e de “emoções”. Foi com ela, e talvez só com ela o tenha conseguido fazer genuinamente, que existiu partilha mútua de todas as emoções, aquelas às quais recusamos mostrar a luz do dia, habitualmente. Isso, não mudou com a demência! Podia não ser expresso com palavras mas foi sempre expresso de muitas outras formas – com gestos, com olhares, com música, por exemplo.
Esta caminhada sofreu um interregno em Fevereiro de 2016. Vi a minha mãe, pela última vez, num dia de neve. Infelizmente, num hospital, já com muitas dificuldades e sem falar mas isso não impediu a comunicação. Naquele dia ia ter que viajar para regressar ao trabalho e começou a nevar intensamente. Olhamos uma para outra, disse-lhe que tinha que ir e ela olhou para mim com aquele olhar ternurento como só as mães sabem fazer. E, de repente, percebi, estava a declamar (sem falar) o nosso poema… Melhor, o poema que gentilmente o Augusto Gil nos cedeu… Então, naquele momento, talvez como nunca tinha sido até então, fui a sua voz amplificada… “Batem leve levemente, como quem chama por mim”… Sorriu.
O último sorriso que eu vi e que guardo como uma das minhas memórias mais preciosas.
Ao longo desta caminhada (que depois continuei de outras formas por memória à minha mãe e de tantas outras pessoas em situação idêntica) as coisas foram mudando, existem outro tipo de intervenções, começam a surgir outro tipo de apoios e fala-se muito na sensibilização para as demências e para a Doença de Alzheimer.
Mas, mais do que sensibilizar para a doença, para as dificuldades, para a perda, falta sensibilizar para a vida! Para o que não se perde, ainda que à primeira (e segunda) vista pareça que sim. É preciso um olhar mais intenso, mais perspicaz se quiserem, e sim, não me canso de o repetir, a demência também nos pode trazer coisas boas. Pode trazer-nos uma maior compreensão e uma maior aproximação às pessoas que, elas sim, fazem verdadeiramente esta caminhada e que nós não conseguimos compreender. Temos é que estar disponíveis para tal. Claro que existem momentos muito maus e muito difíceis mas não é diferente de qualquer outro percurso mais sinuoso.
Ouço muitas vezes dizer “a pessoa já não está lá”… Não devem haver muitas expressões que me irritem mais do que esta. Claro que está! É a mesma pessoa, com a mesma história de vida, que neste momento se relaciona de uma forma diferente com tudo aquilo que a rodeia e nunca, mas mesmo nunca, nos podemos esquecer disso.
O que quero transmitir com esta experiência, com este texto, se assim me permitirem, é que, caso estejam a fazer este percurso, não deixem de olhar (“com olhos de ver”) para a pessoa. Vão ver que a conseguem (re)encontrar.
Naquele dia de neve, a mãe já não falava, já não se reconhecia no espelho, já não sabia onde estava (achamos nós) mas garanto-vos que estava a declamar a Balada da Neve!
Carmina Rei